Por Marcus Vinicius Vita e Leonardo Pereira Santos Costa
Vivemos em um paradoxo. Na atual quadra, as tecnologias da comunicação se tornaram pressuposto e condição necessária para o regular exercício de direitos fundamentais básicos, eis que se tornaram o veículo e meio próprio que vocalizam o agir comunicativo dos diversos atores sociais na esfera pública digital, para parafrasear Jürgen Habermas.
Diz-se um mundo de paradoxos porque, ao mesmo tempo que em as tecnologias da informação e o processo de automatização da vida social possuem o condão de ajudar a construir a biografia e os atributos da personalidade de alguém, contraditoriamente, são elas próprias, as tecnologias da informação, a munição para a corrosão da existência social de um ser e a ameaça ao próprio exercício da cidadania de uma dada comunidade política. O movimento do cancelamento de pessoas ou empresas na esfera digital se transformou na nova praça de linchamento, em tribunais difusos, pautados pelas regras das próprias provedoras de internet e redes sociais.
É nessa permanente tensão entre veículo de exercício de direitos fundamentais e aniquilação dessas mesmas liberdades fundamentais consagradas pelo regime democrático que se coloca a jurisdição constitucional, não raro conclamadas a promover a adequada calibragem hermenêutica das práticas estatais de tratamento de dados pessoais à luz do plexo axiológico das normas consagradas pelas Constituições.
Trata-se, em verdade, de um redesenho da própria arquitetura institucional das Cortes Constitucionais face ao fenômeno contemporâneo que se convencionou chamar de Constitucionalismo Digital (digital constitucionalism).
Nesse sentido, Wolfgang Hoffmann-Riem prescreve que a jurisdição constitucional deve funcionar como verdadeiro mecanismo institucional de inovação jurídica com vistas à permanente tutela dos direitos fundamentais constantemente ameaçados no terreno pantanoso do ciberespaço:
“As tecnologias oferecem um enorme potencial, e não é exagero referir-se às oportunidades decorrentes da sociedade da informação. Na maioria dos aspectos da vida diária, os cidadãos são hoje obrigados a utilizar as novas tecnologias para não serem socialmente marginalizados. Mas as novas tecnologias também trazem consigo um potencial de perigo: não só o de terceiros, incluindo o Estado, penetrando na esfera privada, mas também o desenvolvimento de um poder de comunicação e de poder econômico que impõe seus interesses seletivamente através de manipulação ou por outros meios” [1].
Foi, então, justamente imbuído desse espírito de permanente abertura institucional que, no último dia 15, o Pleno do Supremo Tribunal Federal encerrou um dos mais belos capítulos de sua altiva missão de renovar o compromisso de manter viva a força normativa da Constituição Federal de 1988, nela encontrando caminhos, e não entraves, para a proteção jurídica da intimidade enquanto garantia básica da ordem democrática [2].
É que, na assentada realizada naquela data, a Suprema Corte finalizou, sob a batuta do bem conduzido voto do relator, ministro Gilmar Mendes, o julgamento conjunto da ADI nº 6649/DF e da ADPF nº 695/DF. Ambas as ações questionavam, sob diferentes óticas, a compatibilidade do Decreto nº 10.046/2019, exarado pela Presidência da República, com o regime constitucional de proteção de dados e com a garantia do devido processo informacional.
Excetuado o ministro Edson Fachin, que votou no sentido de declarar a integral invalidade do Decreto nº 10.046/2019, o STF, no mérito da disputa constitucional, entendeu que é o caso de se conferir interpretação conforme à Constituição às disposições do aludido ato normativo.
Estava em jogo saber, dentre outros relevantes pontos, se as disposições do Decreto nº 10.046/2019, que possuem como escopo sistematizar o conjunto de princípios e regras aplicáveis ao compartilhamento de dados entre entes e órgãos da Administração Pública Federal para o exercício daquilo que a doutrina administrativista italiana denomina de princípio da boa administração, entre nós traduzido por eficiência (CF, art. 37, caput). Nas palavras de Marcello Clarich:
“É impensável que, na sociedade moderna, as repartições públicas operem com instrumentos defasados, renunciando à tecnologia, às ferramentas digitais, e desprezando as melhores práticas gerenciais. Ou seja, não é dado ao Estado virar as costas para o progresso tecnológico, tampouco permanecer amarrado ao passado. Cuida-se de mais cristalina aplicação do princípio da eficiência administrativa, ou daquilo que os italianos chamam de princípio da boa administração” [3].
Foi precisamente nessa encruzilhada entre, de um lado, normas que reclamam transparência na gestão da coisa pública, notadamente no que tange ao compartilhamento de dados entre órgãos e entes da Administração Pública Federal para, na atual sociedade digital, melhor realizar o princípio constitucional da eficiência administrativa; e, de outro, aquelas que estabelecem limites para o fluxo de dados pessoais coletados ou produzidos pelo Estado, que o STF foi instado a solver esse aparente conflito normativo.
Aparente porque não existe, na atual configuração do Constitucionalismo Digital, um interesse público que — ex ante — possa justificar, abstratamente, a mitigação da força normativa do direito fundamental à intimidade, à vida privada e, sobretudo, a autodeterminação informativa.
Segundo anotam Gillian Black e Leslie Stevens, “se a privacidade for tratada simplesmente como um direito ou interesse individual, sempre será possível para o setor público controlar dados para suas finalidades públicas, já que isso será sempre reputado como necessário e proporcional” [4].
A bem da verdade, o que se exige é uma construção hermenêutica, à luz do estatuto axiológico do direito fundamental à privacidade, de um regime jurídico híbrido. Isso porque, a implementação de um regime jurídico da proteção de dados pessoais é um objetivo transindividual de estruturação de regimes democráticos. Sua abordagem, na dicção do Supremo, deve ser coletiva e institucional.
De acordo com Daniel Solove: “a privacidade não é algo que indivíduos automatizados possuem no estado de natureza e que sacrificam para se unir ao pacto social. Estabelecemos proteções à privacidade por causa de seus profundos efeitos sobre a estrutura de poder e de liberdade na sociedade como um todo” [5]. Portanto, “a proteção da privacidade nos protege contra prejuízos a atividades que são importantes tanto para os indivíduos quanto para a sociedade” (Idem).
No limite, o que se tem não é apenas um redesenho do papel do Estado e dos regimes democráticos clássicos oriundos do século XX, mas também e, sobretudo, da própria semântica do direito fundamental à privacidade, historicamente pensado em um sentido individualista de clara segmentação entre as esferas pública x privada, ou de maneira que o núcleo de sua proteção jurídica se esgotava no direito de ser deixado só (“the right to be left alone”) [6].
Essa orientação de sentido foi refletida na jurisprudência do STF quando, por exemplo, julgou o RE nº 418.416 (ministro Sepúlveda Pertence), momento em que a corte sufragou uma concepção do direito à privacidade como uma espécie de garantia individual de abstenção do Estado na esfera individual do cidadão.
Todavia, com o curso da história, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e abertura do mundo à Indústria 4.0, tem-se a configuração daquilo que Stefano Rodotà denomina de “processo de inexorável reinvenção da privacidade” [7]. Reivenciona-se a privacidade e, por consequência, reinvenciona-se a jurisdição constitucional e as diretrizes hermenêuticas que ela imprime a esse e a outros direitos fundamentais correlatos.
Na experiência internacional, é clássico e paradigmático o Volkszählungsurteil (BVerfGE 65, 1), de 1983, mediante o qual o Tribunal Constitucional Federal alemão declarou a inconstitucionalidade da Lei do Censo que possibilitava que o Estado realizasse o cruzamento de informações sobre os cidadãos para mensuração estatística da distribuição geográfica e espacial da população. Como bem ensinou o ministro Gilmar Mendes durante o julgamento:
“Nesse julgado, a Corte Constitucional redefiniu os contornos do direito de proteção de dados pessoais, situando-o como verdadeira projeção de um direito geral de personalidade para além da mera proteção constitucional ao sigilo.”
Entre nós, a guinada hermenêutica do STF rumo ao reconhecimento da privacidade como “o direito de manter o controle de suas próprias informações” [8], embora encontre seus primeiros registros com a apreciação do Tema nº 528 da Repercussão Geral (RE 637.707 — ministro Luiz Fux), parece ter ganhado força de modo mais decisivo com o julgamento da ADI nº 6.347 (ministra Rosa Weber). Pela vez primeira, a Corte reconheceu que a proteção de dados pessoais e a autodeterminação informacional são direitos fundamentais autônomos.
De certo, o caminho de abertura da jurisdição constitucional brasileira ao constitucionalismo digital (digital constitucionalism) que começou a ser pavimentado com os aludidos julgamentos parece agora, com a ADI nº 6.649/DF e da ADPF nº 695, ter encontrado seu ponto alto com a mensagem constitucional endereçada pela corte a partir do voto condutor do ministro Gilmar Mendes.
Ao fim e ao cabo, é nessa permanente tensão dialética reconstrutiva da semântica do direito à privacidade ou nesse aparente paradoxo entre proposições normativas como eficiência estatal x preservação de dados pessoais informadores do perfil biográfico do cidadão, que o STF, à luz do pensamento de Peter Häberle, caminhou na esteira de um “pensamento de possibilidades” (Möglichkeitsdenken), cujo traço distintivo se caracteriza por ser uma “expressão, consequência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta. Trata-se de pensar a partir e em novas perspectivas, questionando-se: ‘que outra solução seria viável para uma determinada situação?'” [9]
[1] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. “Innovaciones em La Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Alemán, a Propósito de la Garatía de Los Derechos Fundamentales Em Respuesta A Los Cambios Que Conducen A La Sociedad de La Informacion”. In: ReDCE, n. 22, 2014 – destacou-se e grifou-se.
[2] Trecho do voto do min. Gilmar Mendes na ADI nº 6.649/DF e ADPF nº 695/DF.
[3] CLARICH, Marcello. Manuale di Diritto Admministrativo. 5ª ed. Bolonha: il Mulino, 2022, pp. 152-153 – destacou-se.
[4] BLACK, Gillian e STEVENS, Leslie. “Enhancing Data Protection and Data Processing in the Public Sector: The Critical Role of Proportionality and the Public Interest”. In: Scripted. Vol. 10m n. 1, 2013, p. 95.
[5] SOLOVE, Daniel. J. Understanding Privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 93.
[6] Trecho do voto do min. Gilmar Mendes na ADI nº 6.649/DF e ADPF nº 695/DF.
[7] RODOTÀ, Stefano. A via na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.
[8] RODOTÀ, Stefano. In diritto di avere. Roma: Laterza, 2012, p. 321.
[9] FERREIRA MENDES, Gilmar. Interpretação Constitucional e “Pensamento de Possibilidades”. Revista do MPPR, dez.2015
Publicado no Consultor Jurídico.