02 março, 2021 - Artigos ADI 5529 e o panorama internacional da extensão das patentes

Por Marcus Vinicius Vita Ferreira e Clarissa Marcondes Macéa

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Debate internacional reconhece a tensão entre a proteção das patentes e a realização do direito à saúde

Em muitos julgamentos importantes, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem realizado a análise de temas à luz do panorama internacional das questões em debate. Assim ocorreu com o recente julgamento sobre o direito ao esquecimento (RE 1.010.606), entendido como inconstitucional pela Corte. O voto do ministro-relator, Dias Toffoli, fez cuidadosa investigação a respeito do tratamento da matéria em outras jurisdições, como França, Estados Unidos e Espanha.

É esperado, assim, que, no exame da ADI 5.529, pautada para julgamento no dia 26 de maio próximo, a Suprema Corte não descuide de abordar a norma impugnada frente ao panorama internacional do assunto. Trata-se de uma das ações mais relevantes a serem apreciadas pela Corte neste ano, inclusive pelo impacto econômico que tem para o Sistema Único de Saúde (SUS) – pressionado, mais do que nunca, no contexto da pandemia da Covid-19.

A ADI 5.529 foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR) em 2016 e tem por objeto a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI). Pela regra do parágrafo único, o prazo de vigência das patentes, que, pelo caput do dispositivo, é de 20 anos a contar do depósito do pedido no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), e pode ser estendido caso o período transcorrido entre o depósito e a concessão ultrapasse 10 anos. Vinculado à demora do INPI em cada caso, o prazo de extensão é indefinido, havendo registros de proteção patentária total de 34 anos.

A PGR argumenta que o dispositivo é inconstitucional por extrapolar os objetivos da proteção patentária e provocar prejuízos generalizados, com ferimento a diversos dispositivos constitucionais (art. 5º, caput, da CF – segurança jurídica; art. 5º, XXIX, da CF – temporariedade da proteção patentária, interesse social e desenvolvimento tecnológico e econômico do País; art. 5º, XXXII e art. 170, V, da CF – defesa do consumidor; e art. 170, IV, da CF – liberdade de concorrência).

A análise do tratamento internacional da questão é recomendável sob dois aspectos. Em primeiro lugar, porque as patentes são objeto de compromissos internacionais do Brasil, notadamente o Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), promulgado pelo Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Em segundo lugar, cumpre verificar se outros ordenamentos contam com previsões semelhantes à do parágrafo único do art. 40 da LPI, a fim de situar o tratamento legislativo brasileiro à luz da experiência internacional. O presente artigo tem por objetivo analisar esses dois pontos.

Quanto ao primeiro ponto, até 1996, vigia no Brasil prazo de 15 anos para privilégio de invenção, disciplinado no já revogado Código de Propriedade Industrial (Lei 5.772/71). Com a entrada em vigor do Acordo TRIPS, em 1995, o Brasil teve de adaptar a legislação doméstica aos compromissos assumidos internacionalmente, o que ocorreu com a edição da LPI, em 1996.

O Artigo 33 do Acordo TRIPS determina que o prazo de vigência das patentes deverá ser no mínimo de 20 anos contados da data do depósito. Foi justamente nesse sentido que o caput do art. 40 da LPI, editada em 1996, determinou que “a patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos”. A extensão do prazo disciplinada no parágrafo único da art. 40 da LPI, contudo, não deriva do referido Acordo. O projeto de lei original que deu origem à LPI (PL 824/91) não continha o dispositivo, que somente foi inserido no segundo substitutivo apresentado em 1993 (PL 824-B/1991), não havendo, na ocasião, os debates necessários sobre as consequências da regra acrescentada.

Respondendo a consultas formuladas com base na Lei de Acesso à Informação, o Ministério das Relações Exteriores esclareceu que o mandato dos negociadores do Brasil por ocasião da celebração do Acordo TRIPS não incluiu a negociação de eventual extensão do prazo das patentes.

O Itamaraty também deixou claro que uma extensão de patentes como a prevista no parágrafo único do Artigo 40 da LPI não é exigida pelo Acordo TRIPS.

Ainda, a posição dos negociadores brasileiros nas diversas negociações subsequentes e nos foros internacionais de que participam tem sido a de recusar demandas que possam implicar a adoção de prazos patentários mais extensos do que o mínimo previsto no Artigo 33 do Acordo TRIPS. As razões para essa orientação, segundo o Itamaraty, são variadas: o referido prazo é tido como mais do que suficiente para recompensar a inovação e representa o atual consenso internacional sobre a duração equilibrada de uma patente.

Os esclarecimentos do Itamaraty estão em perfeito alinhamento com percepções solidificadas no âmbito do direito comparado sobre a matéria. A temática das patentes é marcada pela diferença estrutural de interesses entre países desenvolvidos, detentores das principais patentes, e países em desenvolvimento, detentores de poucas patentes.

O Acordo TRIPS, assim, é considerado, no Brasil, instrumento que protege principalmente a propriedade intelectual de origem externa. Não por acaso, o Relatório de Atividades do INPI de 2018 indica que 80% dos depositantes de patentes de invenção no Brasil são estrangeiros, notadamente provenientes de países desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Suíça, Holanda e Reino Unido.

Para além do Acordo TRIPS, há cláusulas em tratados internacionais ainda mais protetivas para os detentores dos direitos de propriedade intelectual, as chamadas cláusulas “TRIPS-plus”. Também as cláusulas “TRIPS-plus” em novos acordos bilaterais ou regionais são produto de interesses de países desenvolvidos. A despeito de o parágrafo único do art. 40 da LPI ir além do padrão exigido pelo Art. 33 do Acordo TRIPS (e ser, assim, considerado norma do tipo “TRIPS-plus”), ressalte-se que o Brasil não é parte de nenhum tratado que preveja essa obrigação “TRIPS-plus”.

Estudo conjunto publicado em 2002 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC) deixa claro que não há, no Acordo TRIPS, qualquer obrigação de extensão da patente para compensar demoras em aprovação regulatória.

Num outro viés, o debate internacional sobre propriedade intelectual reconhece, de forma inequívoca, a tensão entre a proteção das patentes e a realização do direito à saúde por meio do acesso a medicamentos. Em publicação de 2015, a OMS indica que, “do ponto de vista do preço e da acessibilidade de medicamentos, regras ‘TRIPS-plus’ devem ser avaliadas com cautela”.

Isso também é claramente expressado na “Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública”, adotada em 2001 pela Conferência Ministerial da OMC. A Declaração reconhece que “a proteção à propriedade intelectual é importante para o desenvolvimento de novos medicamentos”, mas também aponta “preocupações de seus efeitos sobre os preços” (Parágrafo 3). No mesmo sentido, afirma que “o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de forma a apoiar os direitos dos Membros da OMC a protegerem a saúde pública e, em particular, a promover o acesso a medicamentos para todos” (Parágrafo 4).

No sistema de direitos humanos das Nações Unidas, encontram-se manifestações enfaticamente contrárias à adoção de regras “TRIPS-plus”. Em relatório dedicado a acesso a medicamentos no contexto do direito à saúde, apresentado em 2009, o Relator Especial das Nações Unidas sobre Direito à Saúde, Anand Grover, foi bastante explícito em suas recomendações:

“Países em desenvolvimento e PMDRs [países de menor desenvolvimento relativo] não deveriam introduzir padrões TRIPS-plus em suas leis nacionais. Países desenvolvidos não deveriam encorajar países em desenvolvimento e PMDRs a ingressar em acordos de livre-comércio TRIPS-plus e deveriam ser cuidadosos com ações que podem infringir o direito à saúde” (colchetes nossos).

“Países em desenvolvimento e PMDRs deveriam especificamente adotar e aplicar medidas pró-concorrência para prevenir o abuso do sistema de patentes, particularmente no que tange ao acesso a medicamentos”.

Como se vê, o debate em foros internacionais especializados alerta que medidas protetivas para além do estabelecido pelo Acordo TRIPS têm sérios impactos na efetiva realização do direito à saúde e afetam mormente aqueles países economicamente mais frágeis, sendo ilustrativas da contraposição de interesses entre países desenvolvidos detentores de patentes e aqueles em desenvolvimento, que buscam acesso aos medicamentos.

Enfim, o parágrafo único do art. 40, diferentemente do caput do dispositivo, não deriva de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Como país em desenvolvimento, o Brasil não se beneficia da extensão patentária em questão, cujos benefícios aproveitam principalmente a empresas estrangeiras. Ademais, o prolongamento patentário em discussão é objeto de aguda crítica internacional do ponto de vista da realização de direitos humanos, por seus efeitos negativos para a efetivação do direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição Brasileira.

Com essas considerações, o segundo ponto a ser analisado é se outros ordenamentos jurídicos contam com previsões semelhantes àquela do parágrafo único. Como observa Pedro Felipe dos Santos: “Nas últimas décadas, as cortes de todo o Globo têm recorrido mais frequentemente a normas e a julgados de Estados estrangeiros e de organismos internacionais para fundamentar decisões em matéria constitucional”.

Consoante já denuncia o panorama internacional da questão acima descrito, a norma do parágrafo único é extremamente sui generis. No curso da instrução da ação, alguns amici curiae, defensores da constitucionalidade da norma, chegaram a defender que ela se assemelharia a mecanismos previstos em outros ordenamentos como o Patent Term Extension (PTE), adotado por países da União Europeia, ou o Patent Term Adjstment (PTA), utilizado, por exemplo, pelos Estados Unidos, Chile, Colômbia, Coreia do Sul e Singapura. A alegação não procede.

A singularidade da norma brasileira foi demonstrada em minucioso e pioneiro estudo de direito comparado realizado pelo Grupo Direito e Pobreza da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (GDP-USP), cuja conclusão é eloquente: “[p]ara além de não ser decorrente de tratados dos quais o Brasil é signatário, o artigo 40, parágrafo único, na Lei de Propriedade Industrial não encontra espelho relevante na experiência internacional”.

O GDP-USP analisou a legislação pertinente de 30 jurisdições e coletou mais de cinco mil decisões a respeito de concessão, extensão e ajuste do termo dos privilégios nas jurisdições analisadas. A pesquisa inclusive traça linhas divisórias entre o parágrafo único e os mecanismos do PTE e PTA. Demonstra que, mesmo os países que permitem a ampliação da vigência de patentes, o fazem de forma excepcional, por um prazo máximo pré-determinado e conhecido de antemão, em regra mediante solicitação expressa do depositante e posterior aprovação pelo escritório de patentes.

Além disso, diferentemente do que ocorre no Brasil, algumas dessas prorrogações adotadas – em regra por países desenvolvidos – pretendem compensar demoras decorrentes de outras aprovações regulatórias (como, por exemplo, para medicamentos) e não do processo de patenteação em si.

Analisando as dez patentes farmacêuticas com prazo de vigência mais extenso no Brasil em comparação com outros ordenamentos, o GDP-USP verificou que, enquanto a vigência média no País é de 29,61 anos, suas correspondentes nos demais países (como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Índia, China e França) apresentam proteção média pouco superior aos vinte anos previstos no Acordo TRIPS.

A partir dos inúmeros dados analisados, observou o GDP-USP: “[s]ob a perspectiva de um país em desenvolvimento, a opção brasileira pela concessão de prorrogações de validade patentária superiores às de nações desenvolvidas parece ser incompatível com as necessidades nacionais de acesso à saúde e ao conhecimento, bem como aos princípios constitucionais de promoção do direito à saúde e do estímulo ao desenvolvimento nacional”. Essas ponderações são sólidas e devem orientar o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação, já que estão inclusive acostadas aos autos.

Conclui-se, assim, que, em sua dimensão internacional, sob o enfoque dos dois pontos examinados, a declaração de inconstitucionalidade do mecanismo do parágrafo único do art. 40 da LPI alinha-se com os compromissos internacionais brasileiros e com o direito comparado. Esse panorama robustece ainda mais a fundamentação jurídico-constitucional para a declaração da inconstitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal, pretendida pela Procuradoria-Geral da República.

Artigo publicado no JOTA.

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