19 junho, 2020 - Artigos Do descabimento da cobrança de IPTU no período em que os shoppings permaneceram fechados por determinação dos municípios

Por Bernardo Cavalcanti Freire

Publicado na revista


I – Introdução

A relevância do Imposto Predial e Territorial Urbano (“IPTU”) no valor total das despesas fixas dos Shopping Centers é fato incontroverso entre todos os empreendedores do setor. A influência é ainda maior pela considerável elevação anual dos valores ao redor do país, muitas vezes sem qualquer critério, o que exige de todos aqueles que vivem a realidade dos Shoppings uma estruturação financeira para arcar com os pagamentos.

A questão passou a ter ainda maior importância neste ano de 2020, em que, como é fato notório, adveio a pandemia do Covid-19, deflagrando estado de calamidade pública ao redor do país. Por força disso e na tentativa de conter a disseminação do vírus, quase todos os municípios determinaram que estabelecimentos comerciais como os Shopping Centers deveriam se manter fechados, sem atividade econômica e acesso do público ao seu interior, o que perdurou por alguns meses.

Contudo, a grande maioria desses municípios manteve integralmente o valor do IPTU mesmo durante o período de fechamento, desconsiderando a impossibilidade de exercício, pelos particulares, das suas atividades empresariais nos respectivos imóveis de sua propriedade.

Registre-se que não se ignora os efeitos da crise decorrente da pandemia. Não se questiona, outrossim, as medidas adotadas pelas autoridades para combater, neste momento ímpar da história da humanidade, a contaminação da população pelo Covid-19.

O que se pretende analisar é uma questão puramente jurídica: ao se impor o fechamento total e peremptório das propriedades em que os empreendedores exercem sua atividade econômica, é possível entender que desaparece o fato gerador do IPTU, que é, justamente, o direito de propriedade, a possibilidade de usar, gozar, fruir e dispor do bem imóvel em sua integralidade?

II – Restrição ao direito de propriedade pelo próprio município, ente tributante, que afasta o fato gerador do IPTU

A discussão se inicia pela análise do núcleo do arquétipo constitucional do IPTU, pois seu fato gerador é justamente a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel localizado na zona urbana do município, nos exatos termos do art. 32(1) do CTN e como prevê o art. 156, I da Carta Magna(2) . O direito de propriedade, por sua vez, como é cediço, é garantido pelo próprio caput do art. 5º da Carta Magna e pelo seu inciso XXII(3).

Veja-se que embora não haja uma definição legal ou constitucional de propriedade, o Código Civil descreve, no art. 1.228, os poderes do proprietário como sendo: a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha(4).

Observa-se, assim, que os contornos do arquétipo constitucional dessa exação tributária estão plenamente identificados pela legislação de regência, tendo por núcleo a imprescindibilidade de uso e gozo plenos do bem imóvel.

Logo, ao serem retiradas as condições de uso e gozo do bem, desaparece a propriedade e, por conseguinte, a possibilidade de incidência do IPTU. Exatamente o que se verifica quando, por ordem do Poder Público, alguém fica impossibilitado de usar e gozar dos seus imóveis, como foi o caso dos Shopping Centers.

Nem poderia ser diferente, eis que, conforme destaca o mestre Aires F. Barreto(5), “o conceito de propriedade só pode ser extraído em razão dos direitos ou poderes que a integram, isto é, os emergentes das faculdades de uso, gozo, disposição das coisas, até os confins fixados para a coexistência do direito de propriedade dos demais indivíduos e das limitações da lei.

Ademais, lembre-se que o IPTU tem como base de cálculo o valor venal do imóvel, conforme a metodologia e os parâmetros estabelecidos pelas Leis municipais. Logo, a partir do momento em que o fato gerador é extirpado, implicando, ainda, graves reflexos financeiros, é de rigor o recálculo do imposto, para que, partindo da mesma base de cálculo, o pagamento seja proporcional ao período em que há realização desse fato gerador.

Em outras palavras, a restrição afeta frontalmente o aspecto material do IPTU, ou seja, o verdadeiro fato gerador do referido tributo, que é exatamente a propriedade imobiliária. Sem se poder exercer o direito de usar, fruir ou realizar essa propriedade, desaparece o fato gerador do IPTU no período em que essa situação persistir. Não há que se falar, pois, no efetivo exercício do direito de propriedade nesse período de fechamento, quando o seu conteúdo econômico deixa de existir por ato da própria Municipalidade responsável pela cobrança do IPTU.

Os Tribunais Pátrios vêm analisando a questão. Nesse sentido, como recentemente bem observou a Des. Mônica Serrano, da C. 14ª Câmara de Direito Público do TJSP, é irrazoável a exigência de IPTU sempre que o imóvel é reduzido à neutralidade econômica:

“Assim, em primeira análise, revela-se irrazoável a exigência de IPTU sobre um imóvel que foi reduzido à neutralidade econômica pela impossibilidade de circulação de pessoas em seus corredores, lojas e demais estabelecimentos, fato que, aliado à posição firme do STJ no sentido de se afastar a cobrança do tributo nos casos em que esvaziados os poderes inerentes à propriedade, autoriza a concessão da tutela recursal pretendida”.(6)

Ademais, antes mesmo do Covid-19, o Poder Judiciário já afastava a cobrança do IPTU sempre que verificava limitações ao direito de propriedade, fossem elas transitórias ou definitivas.

Nessa linha, ao analisar a cobrança de IPTU quando os imóveis foram temporariamente desapropriados ou invadidos, em acórdão da lavra do Min. Herman Benjamin, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que “em casos em que se encontra consolidado, em definitivo, o esvaziamento dos atributos de propriedade (gozo, uso e disposição do bem) – (…) não incidem os tributos sobre eles incidentes” (7).

Ademais, em acórdão relatado pelo Min. Mauro Campbell, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que, sem o “domínio útil do imóvel”, desaparece o “o aspecto subjetivo da hipótese de incidência do IPTU, disposto no artigo 34 do CTN, (…) razão pela qual não se prospera a incidência do referido tributo”(8).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua vez, analisou recentemente hipótese de invasão – que, por premissa, não é definitiva – em que foi afastada a incidência do IPTU pela ausência de “animus domini, qualidade que o executado não ostenta”:

“APELAÇÃO EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – EXECUÇÃO FISCAL IPTU Ação extinta em primeiro grau em razão do reconhecimento de ilegitimidade passiva. Cabimento Invasão da área que compreende o imóvel tributado que é de conhecimento público e notório. Esvaziamento do fato gerador do imposto e da faculdade da propriedade. Município que deveria tomar providências para a regularização da área e/ou constituir o débito tributário em nome dos atuais possuidores, que se encontram no imóvel com “animus domini”, qualidade que o executado não ostenta. Sentença mantida – Recurso desprovido”(9).

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios também já interpretou tema similar, em que houve determinação legislativa e judicial limitando a propriedade e constatou que “Inviabilizado o uso social desses terrenos judicialmente e, também, pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal, frustra-se a função social e a atividade econômica das empresas adquirentes, que é a incorporação imobiliária, motivo pelo qual não deve incidir tributação no período em que houve óbice ao respectivo uso”(10).

Portanto, o que importa para o Poder Judiciário é o exercício pleno do direito de propriedade, através do exercício do domínio útil do imóvel. É identificar se o particular, por qualquer motivo que seja, está privado de exercer plenamente sua propriedade. Nesses casos, não pode ser obrigado a pagar o IPTU.

Adicionalmente, por analogia, imagine-se uma requisição de bem público, desapropriação temporária ou mesmo uma ocupação ou limitação temporária? Como exigir do particular que, enquanto ele está privado da exploração econômica do bem, sem qualquer domínio útil ou exercício de propriedade, pague o imposto, quando o próprio Município interveio e impediu essa plena utilização?

A lógica que deveria prevalecer, pois, é que (i) se o particular é proprietário do imóvel; mas (ii) por motivos alheios à sua vontade, tem seus direitos de propriedade afastados por ato unilateral do Poder Público; (iii) desaparece de forma superveniente o fato gerador do IPTU; (iv) pouco importando se essa ofensa ao direito de propriedade é definitiva ou não.

Não se olvide, ademais, que o Poder Judiciário tem se omitido na análise da questão. Nesse sentido, inclusive, as recentes decisões proferidas pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Des. Geraldo Pinheiro Franco(11) e pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Dias Toffoli, em sede de Suspensão de Segurança(12), não analisaram o mérito da discussão, limitando-se a discorrer sobre a impossibilidade de o Poder Judiciário conceder moratória e acerca da discricionariedade administrativa em matéria tributária, o que tem sido aceito em algumas demandas propostas sobre o tema. Em momento algum, pois, discutiram o desaparecimento do fato gerador do tributo quando sua exploração é impedida pelo Poder Público.

Contudo, no precedente acima, o próprio Min. Dias Toffoli ressalvou que “apenas eventuais ilegalidades ou violações à ordem constitucional vigente devem merecer sanção judicial”. É exatamente a questão da cobrança do tributo quando desaparece o fato gerador.

É provável, nessa linha, que o Supremo Tribunal Federal venha a analisar o tema e nortear a atuação do Poder Público Municipal ao redor do país, seja por eventual Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, em que poderá se discutir a violação ao direito de propriedade e à segurança jurídica, ou mesmo pela análise casuística. Mas, enquanto isto não ocorre, os proprietários de imóveis acabam sofrendo com a cobrança dos abusivos valores de IPTU mesmo sem poder exercer o direito de propriedade.

Assim, as restrições impostas ao direito de propriedade ensejam o desaparecimento do fato gerador do IPTU, não havendo que se falar, outrossim, na consequente exigibilidade do crédito tributário dele decorrente ao longo do período em que inviabilizada a atividade econômica na propriedade. Nessas situações, parece razoável que ocorra a firme atuação do Poder Judiciário para determinar o recálculo do imposto excluindo proporcionalmente o período em que inviabilizado o exercício pleno do direito de propriedade.

III – A razoabilidade econômica da redução administrativa do IPTU quanto ao período em que os imóveis estão proibidos de operar. Aumento expressivo da inadimplência

Ademais, mesmo que o Poder Judiciário venha a entender que, na hipótese, a competência para realizar o recálculo do IPTU considerando o período sem atividade econômica é do Poder Público, ainda assim impõe-se a redução dos valores. E isto por uma ótica puramente econômica.

Ora, é bastante provável que a inadimplência fiscal cresça de forma considerável, principalmente dentre aqueles que não puderam dispor de seus imóveis, que certamente enfrentam severa retração econômica e dificuldades de caixa. Já são diversas as notícias neste sentido na imprensa(13).

Em situações assim, ainda que o Poder Judiciário venha a concluir que não pode se imiscuir na discricionariedade administrativa, impõe-se que os poderes públicos municipais adotem medidas para ao menos mitigar o prejuízo desses particulares – e continuar a perceber a respectiva arrecadação municipal. É o que já fizeram Maceió/AL (Decreto nº. 8.867/20) e Rio de Janeiro (Lei nº. 6.740/2020), que previram um desconto no IPTU para quem antecipar o pagamento integral.

A lógica é simples: em momentos de crise econômica e de dificuldades de caixa, os empresários acabam sendo obrigados a escolher que contas irão pagar. O usual é que acabem por postergar o pagamento exatamente dos tributos, o que acaba impondo que o Poder Público venha a, no futuro, prever programas de refinanciamento fiscal para receber parte dos valores que não foram pagos (os “REFIS”).

Tal situação é agravada no caso daqueles que têm nos imóveis fechados o elemento central do escopo empresarial, como é o caso dos Shopping Centers, que, de um dia para o outro, tiveram sua receita e fluxo de caixa afetados de forma única na cadeira produtiva, já que houve 100% de paralisação, o que não ocorreu nem mesmo com companhias aéreas.

De fato, os Shoppings Centers estão entre os agentes mais severamente afetados pelos deletérios efeitos decorrentes das medidas de isolamento e distanciamento social implementadas no contexto da pandemia.

Com efeito, ainda que extraordinários, os deletérios efeitos da pandemia do COVID-19 já são responsáveis por uma perda, em média, de R$ 15 bilhões por mês no setor de Shopping Centers. A situação certamente impactará inclusive a base de cálculo do IPTU – o valor da propriedade do Shopping –, já há estudos acerca da mudança do consumo futuro em decorrência da pandemia(14) .

Nesse cenário, parece mais inteligente sob a ótica econômica aprovar um desconto para recebimento dos valores de forma imediata, a ser concedido àqueles que não puderam dispor economicamente de suas propriedades, seja proporcionalmente ao período em que permaneceram nessa situação ou ao menos adotando essa regra de forma parcial, a fim de mitigar os prejuízos.

Portanto, mesmo considerando-se que o Poder Judiciário não pode interferir na questão, a previsão de uma solução legislativa que conceda um desconto àqueles que não podem exercer de forma plena o seu direito de propriedade também se impõe sob a ótica econômica.

Do contrário, estar-se-ia diante de verdadeira expropriação regulatória, caracterizada quando o Estado, no regular desempenho de sua função normativa, impõe “um gravame anormal a um particular em benefício da ordenação de atividades em prol do atendimento de interesses transindividuais (v.g., proteção à saúde, ao meio ambiente e à concorrência), o que constitui discriminem não autorizado pela ordem jurídica”(15).

IV – Conclusão

Vê-se, pois, que é essencial a atuação do Poder Judiciário para firmar o entendimento no sentido de que todos aqueles que tiveram impedido o pleno exercício do direito de propriedade não sejam impactados pela cobrança integral do IPTU. A matéria certamente poderá ser definida pelo Supremo Tribunal Federal, seja por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, seja na análise casuística do tema.

Ademais, ainda que o Poder Judiciário decida não interferir no tema, seria importante que cada município adote uma estratégia de apoio àqueles que tiveram a atividade econômica totalmente limitada em suas propriedades, até para evitar uma queda ainda maior na sua arrecadação fiscal e para auxiliar na recuperação da atividade econômica desses empreendedores. Assim, todos – município e empreendedores – poderão superar essa crise.


Notas de rodapé
1 Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
2 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I – propriedade predial e territorial urbana;
3 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXII – É garantido o direito de propriedade.
4 Em consonância com as lições de Maria Helena Diniz a “classificação dos direitos reais deve ser elaborada segundo o critério da extensão de seus poderes. De forma que a propriedade seria o núcleo do sistema dos direitos reais devido estar caracterizada pelo direito de posse, uso, gozo e disposição” (Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 9. ed., v. 4. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 16).
5 Curso de Direito Tributário Municipal, 2ª. Ed. Saraiva, 2012, p. 200.
6 TJSP, AI nº 2085012-50.2020.8.26.0000, Rel. Des. Monica Serrano, DJ de 13.5.2020.
7 STJ, Recurso Especial 1.793.505/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJE de 26.12.2019.
8 STJ, REsp 1695340/MG, Rel. Min. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 24/09/2019.
9 AC 1507928-81.2017.8.26.0114, Relator Des. Wanderley José Federighi, julgado em 21/03/2019.
10 TJDFT, AC 20150110648867APO, Relator Designado: DIAULAS COSTA RIBEIRO 8ª TURMA CÍVEL, j. em 21/2/2019 – grifamos.
11 TJSP, Suspensão de Liminar nº 2020.0000248080, Rel. Presidente Geraldo Pinheiro Franco.
12 STF, Suspensão de Segurança nº 5.374, Rel. Min. Dias Toffoli
13 https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/05/15/com-arrecadacao-em-forte-queda-prefeitos-cortam-investimentos.ghtml
14 Nesse sentido: (i) https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/03/22/shoppings-estimam-perda-mensal-de-r-15-bilhoes-com-crise.ghtml; (ii) https://abrasce.com.br/defesa-do-setor/em-defesa-da-saude-financeira-de-todo-o-setor-produtivo-do-pais/; e (iii) https://www2.deloitte.com/us/en/insights/economy/covid-19/covid-19-implications-for-commercial-real-estate-cre.html.
15 FREITAS, Rafael Véras de. Expropriações regulatórias. Prefácio de Sérgio Guerra; apresentação de Egon Bockmann; Moreira; posfácio de Floriano de Azevedo Marques Neto. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

Artigo publicado na Revista Shopping Centers.

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