11 março, 2021 - Artigos Justiça é palavra feminina

Por Julia de Baére, Ana Carolina Bastos, Cristina Neves da Silva, Deborah Carvalhido, Gabriela Rollemberg e Manuela Alvim de Oliveira

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Com quantas Ministras e Desembargadoras se faz uma Justiça?

A ideia de se criar uma data para celebrar e refletir a luta e direitos das mulheres é antiga. Desde 1909, busca-se estabelecer um marco para manifestações de igualdade de gênero e em favor do voto feminino. É certo que o dia 8 de março decorreu de fortes movimentos femininos de reivindicações políticas e trabalhistas, bem como greves e passeatas organizadas por mulheres contra o desemprego e a deterioração geral das condições de vida. Assim, em 1975, a data foi instituída pelas Nações Unidas como Dia Internacional da Mulher, sendo celebrada em mais de 100 países.

Apesar de ser um dia carregado de significados, tendo em vista a profunda revolução social em relação ao gênero no último século, sua celebração ainda é marcada por atos vazios, como, por exemplo, entrega de flores, de presentes domésticos e desejos de parabéns, sem qualquer vinculação ou reflexão quanto ao pano de fundo por trás desse marco no nosso calendário.

Hoje, nós da Elas Pedem Vista queremos utilizar o real significado da data para propor uma reflexão necessária sobre igualdade de gênero no Poder Judiciário. Reivindicamos que as mulheres ocupem seus espaços em postos de comando do Poder Judiciário. Queremos mais Desembargadoras e Ministras em todos os Tribunais. A Justiça brasileira não será justiça, no sentido estrito, sem a participação igualitária de mulheres em sua composição e também à frente das principais decisões do país. Justiça é palavra feminina. Há uma carga simbólica nessa constatação.

O atual Cenário

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou, em 2019, estudo sobre a participação feminina no Poder Judiciário[1][2]. Apesar de as mulheres serem 51,6% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são minoria na magistratura. Os homens, que representam 48,4% dos brasileiros, são 61,2% dos juízes do nosso país.

O levantamento mostrou, ainda, que o percentual de magistradas nos Tribunais Superiores reduziu de 23,6% para 19,6% nos últimos 10 anos. Havia, contudo, expectativas de que esse número crescesse, tendo em vista o fato de que a ascensão das mulheres ao cargo de Ministra é relativamente recente.

Esse cenário contradiz as diretrizes da Constituição Federal de 1988 (CF), sobretudo a de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I).

Em carta dirigida aos Constituintes em 1986, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) já alertava que “o exercício pleno da cidadania, significa, sim, o direito à representação, à voz e à vez na vida pública[3]”.

De igual modo, tem-se desrespeitado o compromisso assumido pelo Brasil especialmente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – Decreto n. 678/92), que no art. 23 – prevê “todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: (…) c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”.

As chances de um novo futuro

Há pelo menos seis oportunidades em vista para que possamos reescrever a história de representatividade feminina no Poder Judiciário. Com a nomeação do Ministro Kassio Nunes Marques ao Supremo Tribunal Federal (STF), abriu-se uma vaga no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), reservada à advocacia em razão do quinto constitucional (art. 94 da CF).

A aposentadoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho em dezembro de 2020 e o recentíssimo anúncio feito pelo Ministro Nefi Cordeiro também deixam vagas duas cadeiras no Superior Tribunal de Justiça (STJ), dessa vez a serem ocupadas por membros da magistratura.

Importante mencionar, ainda, que a aposentadoria compulsória do Ministro Marco Aurélio está próxima: o decano completará 75 (setenta e cinco) anos em 12 de julho de 2021. Com isso, o Presidente da República terá a chance de nomear mais um integrante da mais alta Corte do país.

Já no Tribunal Superior do Trabalho (TST), atualmente presidido pela primeira vez por uma mulher, Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, a aposentadoria do Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro e o recentíssimo anúncio feito pelo Ministro João Batista Brito Pereira abrem duas vagas: uma para membros da magistratura e outra do Ministério Público do Trabalho (MPT).

É oportuno, portanto, pensarmos em nomes de mulheres aptas e dispostas a ocupar essas cadeiras, de modo a incentivar que integrem as respectivas listas.

Não é demais lembrar que – desde 2014 – nenhuma mulher foi indicada para um Tribunal Superior[4]. As que lá chegaram, seguem sendo minoria: (i) no STF, 2 em 11 (18%); (ii) no STJ, 6 em 33 (18%); (iii) no Superior Tribunal Militar (STM), 1 em 15 (6%); (iv) no TST, 5 em 27 (18%); (v) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 0 de 7 (0%).

As soluções para colocar o discurso em prática

Seria o caso, então, de pensarmos em ações afirmativas para a nomeação de mulheres aos cargos de Desembargadoras e Ministras? A constitucionalidade de iniciativas dessa natureza, associadas a questões de gênero, já foi confirmada pela jurisprudência do STF. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5617[5], decidiu-se que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinado ao financiamento de campanhas eleitorais direcionadas às candidaturas de mulheres deve ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos.

Na oportunidade, o Ministro Fachin, relator, destacou que é próprio do direito à igualdade a possibilidade de uma desequiparação, desde que seja pontual e tenha por objetivo superar desigualdade histórica. Nesse sentido, a participação feminina nos cargos de decisão só vai aumentar por meio de políticas públicas e incentivos que assegurem igualdade formal, seja pela via legislativa ou judicial.

Considerando todos os avanços que a reserva de cotas de gênero proporcionou ao sistema político-eleitoral (art. 10, § 3° da Lei n. 9.504/97), permitindo a maior participação feminina em cargos dos Poderes Executivo e Legislativo, é urgente pensar em algo semelhante para os altos postos do Poder Judiciário.

Em 2018, o CNJ instituiu, por meio da Resolução 255/2018, a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário. Tal norma determina que a igualdade de gênero é objetivo a ser perseguido por todos os órgãos de Justiça, com a edição de medidas concretas que incentivem a participação feminina na alta administração dos Tribunais.

O equilíbrio de gênero em todas as instâncias judiciais contribuirá para a melhoria da prestação jurisdicional do país, pois, com perspectivas diversas, alcançaremos soluções melhores, avaliações mais profundas e o fortalecimento das nossas instituições e da nossa democracia.

Percebemos, contudo, que – apesar dos incentivos – as mulheres permanecem alijadas do processo seletivo para os cargos de Desembargadora e Ministra. Não vemos mulheres sequer sendo cogitadas para formação de listas para composição de Tribunais de 2ª Instância ou Superiores que, como dito, estão com vagas em aberto. Tampouco vemos muitas críticas quanto à ausência de mulheres nessas posições.

Por isso, hoje, não queremos nada além do reconhecimento de que precisamos avançar muito mais na representatividade feminina nos cargos de maior hierarquia dentro do Poder Judiciário, visto que a mudança trará implicações reais na qualidade, eficácia e equidade da prestação jurisdicional.

Assim, convidamos a sociedade civil organizada, a academia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), todas as associações representativas das carreiras jurídicas, os Poderes Judiciário e Legislativo a abraçarem essa pauta. Dessa forma, poderemos celebrar a justiça como substantivo feminino que é, na sua substância.

Depois que a igualdade for plena, formal e material em todos os espaços de poder, aceitaremos os costumeiros parabéns ofertados no Dia Internacional da Mulher, apenas por saber que todo o nosso esforço valeu a pena, pois o nosso lugar na mesa sempre existiu, só não nos permitiram ocupá-lo antes. É chegada, mais do que nunca, a hora de também participarmos.


[1] Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/05/cae277dd017bb4d4457755febf5eed9f.pdf>. Acesso em 25/fev2/021.

[2] A iniciativa se deu em vista da Resolução CNJ n. 255/18, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.

[3] Disponível em <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-constituinte-e-as-mulheres/arquivos/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf>. Acesso em 25/fev/2021.

[4] Disponível em <https://www.jota.info/page/3?s=desde+2014+ministra+tribunal+superior>. Acesso em 5/mar/2021.

[5] STF, Tribunal Pleno, ADI 5617/DF, Relator Ministro EDSON FACHIN, DJe 03/10/2018.


Julia de Baére C. d’Albuquerque é advogada do Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados e mestranda pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).
Ana Carolina Andrada Arrais Caputo Bastos é mestranda pela Università degli Studi di Roma, Tor Vergata. LL.M em Direito Empresarial pela FGV.
Cristina Maria Gama Neves da Silva é advogada e sócia do Lacombe e Neves da Silva Advogados Associados.
Deborah Amorim de S. Carvalhido é especialista em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Gabriela Rollemberg é advogada graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).
Manuela Simões Falcão Alvim de Oliveira é advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo IDP.

Publicado no JOTA.

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