23 julho, 2021 - Artigos O estado de coisas inconstitucional na jurisprudência do STF

Por Marcus Vinicius Vita e Leonardo P. Santos Costa

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Um dos temas constitucionais mais candentes na pauta atual do Supremo Tribunal Federal, entre múltiplos outros que a todo instante desbordam sob a jurisdição de uma Suprema Corte cujos tentáculos se enraízam cada vez mais nos mínimos espaços de conformação do nosso tecido social, é a “técnica” de decisão denominada estado de coisas inconstitucional (ECI).

Muito falada e propalada, especialmente pelo ministro Marco Aurélio Mello, mas ainda relativamente pouco refletida no âmbito jurisprudência do STF, talvez pelo seu caráter inovador e, por isso mesmo, objeto de certa rejeição em razão de promover verdadeiro rearranjo na dinâmica clássica da distribuição funcional dos poderes, o estado de coisas inconstitucional surgiu como categoria e técnica decisória de declaração de inconstitucionalidade na Corte Constitucional da Colômbia no ano de 1997, por ocasião do julgamento da Sentencia de Unificacion (SU) nº 559.

Naquele caso, 45 professores das cidades colombianas de Zambrano e Maria La Baja tiveram seus respectivos direitos previdenciários, inerentes à entidade de classe dos docentes, maciça e estruturalmente violados pelas autoridades locais, que os negaram porque se recusaram a filiar tais docentes ao Fundo Nacional de Prestações do Magistério. Conquanto tenham se recusado a filiá-los ao aludido fundo, estavam as autoridades contraditoriamente promovendo descontos dos salários desses professores não filiados para subsidiar exatamente o fundo que pretendiam aderir.

Em que pese a demanda ter sido proposta por uma classe limitada de professores, a Corte Constitucional colombiana verificou que o descumprimento da obrigação era sistemático e generalizado, apanhando expressivo número de docentes para além daqueles que figuravam como deflagradores da ação.

Foi então que, em alteração hermenêutica histórica no campo do controle e execução das políticas públicas estatais, a corte entendeu que, em virtude de um “dever de colaboração” com os demais poderes, cabia-lhe, ex officio, expandir os limites subjetivos da demanda para alcançar quem, inclusive, não era parte, mas, no entanto, estava sendo afetado em seus direitos fundamentais previdenciários decorrentes das graves omissões dos poderes públicos.

Declarou-se, então, aquilo que se denominou pela vez primeira de estado de coisas inconstitucional. Determinou-se aos aludidos municípios colombianos que se encontrassem em posição similar, como consequência, a correção do estado de inconstitucionalidade estrutural em prazo razoável, bem como procedeu ao envio de cópias da sentença a diversas autoridades estatais para a adoção de providências práticas administrativas e orçamentárias complexas, coordenadas e concertadas com vistas à superação do quadro sistemático de inconstitucionalidades que se desvelavam no país.

O fato é que, sob o ponto de vista teórico, há alguns pressupostos que informam e conformam a categoria decisória que se denomina de estado de coisas inconstitucional. Segundo anota Carlos Alexandre de Azevedo Campos, há três distintas premissas que se fazem necessárias para a caracterização do ECI. A saber [1]: 1) a verificação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, mas, sobretudo, de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afetam grave e invasivamente uma expressiva parcela da uma população; 2) a ausência de adoção e de coordenação para a adoção de medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até mesmo judiciais, configurando-se verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação; e 3) a superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e, sim, a uma pluralidade destes — são necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos etc.

Induvidosamente, a superação de um quadro de sistemáticas violações a direitos fundamentais, ou melhor, a superação de um estado de coisas inconstitucional, reclama uma postura ativa (ou altiva?) das cortes constitucionais para, imiscuindo-se no seio de funções vocacionadas à execução de políticas públicas tradicionalmente entregues aos destinos de outros poderes, determinar que façam ou deixar de fazer medidas administrativas cuja execução cabe à própria Administração, no bojo de sua discricionariedade, adotar.

No Brasil, a categoria do estado de coisas inconstitucional foi pela primeira vez objeto de debate (talvez de adoção) no STF com o julgamento da polêmica medida cautelar na ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), formalizada pelo PSOL contra a União e os entes subnacionais, em que se questionavam as graves e drásticas violações a direitos fundamentais operadas no âmbito do sistema carcerário brasileiro.

Em essência, foram formulados oito pedidos de medida cautelar na ADPF. Eis a síntese realizada pelo juiz federal Márcio André Lopes Cavalcante a partir de três blocos distintos de pedidos acautelatórios dirigidos a entes diferentes [2]:

Obrigações aos juízes e tribunais:

a) Quando forem decretar ou manter prisões provisórias, fundamentem essa decisão dizendo expressamente o motivo pelo qual estão aplicando a prisão e não uma das medidas cautelares alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP);

b) Implementem, no prazo máximo de 90 dias, as audiências de custódia;

c) Quando forem impor cautelares penais, aplicar pena ou decidir algo na execução penal, levem em consideração, de forma expressa e fundamentada, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro;

d) Estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão;

e) Abrandar os requisitos temporais necessários para que o preso goze de benefícios e direitos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando ficar demonstrado que as condições de cumprimento da pena estão, na prática, mais severas do que as previstas na lei em virtude do quadro do sistema carcerário; e

f) Abatam o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são, na prática, mais severas do que as previstas na lei. Isso seria uma forma de “compensar” o fato de o poder público estar cometendo um ilícito estatal.

Obrigação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ):

g) Coordene um mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal em curso no país que envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”.

Obrigação à União:

h) Libere, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.

O fato é que, após o reconhecimento unânime do estado crítico do sistema penitenciário brasileiro pelos ministros do STF e não obstante a repercussão que o caso ganhou, especialmente porque passou-se a considerar que o Brasil adotou a técnica decisória do estado de coisas inconstitucional, concedeu-se apenas parcialmente e em uma extensão menor o pedido de medida acautelatória formulada pelo PSOL. Deferiu-se apenas o pedido “b”, relativo à implementação das audiências de custódia, e o pedido “h”, concernente à liberação das verbas contingenciadas do Funpen.

Quanto aos seis outros pedidos, o Pleno do Supremo entendeu que, em relação a alguns deles, o STF não pode avocar para si funções típicas dos demais poderes, sob pena de usurpação de competência e de desconfiguração de seu desenho institucional. São exemplos: pedidos “e” e “f”, abrandamento de requisitos temporais para que o custodiado progrida de regime prisional com mais celeridade quando verificado cumprimento de pena em condições degradantes e abatimento do tempo de pena em caso de execuções penais que transgridam a dignidade do preso, respectivamente. Já em relação aos demais pedidos endereçados aos magistrados, a Suprema Corte entendeu que as determinações do cumprimento de tais comandos são despiciendas tendo em vista que são deveres impostos aos juízes pelas leis e Constituição.

Em teoria, o Supremo reconheceu os vícios estruturais do sistema penitenciário brasileiro, foi vanguardista, encampou um discurso reconhecedor da perversidade de quem, sob a custódia do Estado, vive em uma masmorra prisional. No entanto, na prática, tentando conciliar o talvez inconciliável, a Suprema Corte não avançou na incorporação efetiva do ECI porque buscou destravar bloqueios políticos e institucionais sem, no entanto, ao menos impor, ou melhor, construir medidas dialógicas com os demais poderes por receio de violação à tradicional estrutura típica de separação de poderes e de cautela em relação à compreensão hermenêutica clássica do princípio democrático.

Um outro caso paradigmático na jurisprudência do STF julgado recentemente em que o debate em torno da técnica decisória do estado de coisas inconstitucional floresceu novamente foi no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5529/DF, proposta pela Procuradoria-Geral da República para questionar a validade constitucional do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI).

A regra inserta no referido parágrafo dava ensejo à hipótese de vigência diferida da proteção patentária, possibilitando que o detentor da patente fosse agraciado com proteção por prazo indefinido e muito superior ao prazo de 20 anos estabelecido pelo caput do mesmo artigo 40 da LPI. É que a norma impugnada prestigiava (no passado, porque declarada inconstitucional), a mora da Administração Pública (INPI) na análise e processamento de pedidos depositados de registro de patentes.

Ao declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal, o Pleno do Supremo, sob a condução do histórico voto proferido pelo relator, ministro Dias Toffoli, entendeu que a norma questionada, além de destoar radicalmente dos parâmetros internacionais no tratamento do tema, violava o direito constitucional à saúde, à livre concorrência, ao caráter temporário da proteção patentária, entre múltiplos outros preceitos constitucionais. O ministro, remontando-se à ratio decidendi da aludida ADPF-MC nº 347/DF, entendeu que “além de o parágrafo único do artigo 40 ser, por si só, inconstitucional, há hoje um estado de coisas inconstitucional no que tange à vigência das patentes no Brasil” (grifo dos autores).

No entanto, em que pese ter sido acompanhado pelo ministro Nunes Marques em relação ao reconhecimento do ECI, o ministro Alexandre de Moraes divergiu do relator quanto ao ponto porque entendeu que, naquele caso, “não se trata de ausência de proteção à propriedade industrial ou à sociedade após os prazos previstos na lei. Retirando a indefinição, a regulamentação está solucionada. Não há um vácuo, a meu ver, que acabe levando a um estado de coisas inconstitucional”. Alterando sua posição, o ministro Dias Toffoli retirou de seu voto condutor a declaração do ECI e as transformou em recomendações ao Poder Legislativo em relação aos aludidos órgãos.

Uma vez mais, quando teve a oportunidade de incorporar, na prática, a técnica decisória do estado de coisas inconstitucional, o Supremo voltou atrás e entendeu que a questão da inconstitucionalidade não era propriamente uma relação de transitividade entre texto constitucional e contexto de graves violações a direitos fundamentais, mas, sim, uma relação clássica relacional entre texto constitucional e texto normativo strictu sensu. Em que pese ter alterado o seu voto original, o ministro Dias Toffoli foi extremamente feliz em pontuar os pressupostos do estado de coisas inconstitucional, que se aplica no cenário generalizado de violações aos direitos e garantias individuais e não se resolve pela mera declaração de inconstitucionalidade de uma norma, mas, sim, em toda a alteração de arcabouço administrativo relacionado a tal estado de coisas.

No último mês, mais uma vez o agora aposentado ministro Marco Aurélio Mello, que capitaneou pela primeira vez o tema do estado de coisas inconstitucional no STF por ocasião do julgamento da Medida Cautelar na ADPF nº 347, demostrou, com altivez e visão crítica da importância do Supremo Tribunal Federal na implementação de políticas públicas, o estado de coisas inconstitucionais no acesso à saúde.

Conquanto tenha imposto uma série de medidas a serem adotadas por todos os entes federativos, o julgamento virtual do caso foi suspenso em razão de pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Como bem ponderado pelo ministro Marco Aurélio, em seu pioneirismo e vanguarda que caracterizou a sua passagem pela Suprema Corte, apenas o reconhecimento de um estado inconstitucional de coisas, pelo Supremo, é capaz de suprir a inércia e o descaso de todos os entes estatais na salvaguarda de direitos básicos fundamentais.

Ao fim e ao cabo, embora não tenha sido aplicada em sua inteireza até o momento na jurisprudência do STF, o estado de coisas inconstitucional suscita no hermeneuta constitucional algumas preocupações à luz do princípio democrático no sentido de qual é o papel dos tribunais, especialmente das cortes constitucionais? Invalidar atos normativos ou corrigir falhas estruturais em políticas públicas? Estaríamos passando ou se cogitando de uma remodelagem dos desenhos funcionais das cortes constitucionais? Se sim, quais seriam os seus — novos — limites institucionais?

Enfim, são muitas e difíceis as respostas a essas indagações que permeiam a tarefa de pensar as funções institucionais da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal, que, apesar de aparentar, a partir do julgamento da Medida Cautelar na ADPF nº 347/DF, que a incorporou em sua jurisprudência, até o momento a invocou muito mais como elemento persuasivo de fundamentação do que propriamente como técnica decisória.

Publicado no Consultor Jurídico.


NOTAS

[1] https://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural

[2] https://www.dizerodireito.com.br/2015/09/entenda-decisao-do-stf-sobre-o-sistema.html

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