22 March, 2023 - Articles O juízo da recuperação judicial e a delimitação das competências

Por Julia de Baére e Paula Lôbo Naslavsky

Dos efeitos da decisão de processamento da recuperação judicial cabe examinar, com mais profundidade, a suspensão das execuções em trâmite contra o devedor. Antes da reforma da Lei 11.101/2005, o prazo de suspensão das execuções era de 180 dias para a recuperação judicial (art. 6º, §4º). Com a reforma decorrente da Lei 14.112/2020, o prazo de 180 dias foi mantido, prevendo-se a prorrogação por mais 180 dias, em caráter excepcional.

O chamado stay period exigirá que os créditos existentes até a data do pedido sejam cobrados mediante habilitação no respectivo procedimento de recuperação judicial e se submeterão ao pagamento conforme a previsão no plano de recuperação judicial.[1] Não há necessidade de expedição de ofícios aos juízos onde tramitam as ações contra o devedor, pois ele próprio deve comunicá-los, já que é o maior interessado na suspensão desses feitos.

Não são suspensas todas as ações e as execuções movidas contra o requerente da recuperação judicial. Continuam a tramitar as ações de conhecimento, que demandam quantias ilíquidas (art. 6º, §1º); reclamações trabalhistas (art. 6º, §2º); as execuções de natureza tributária (art. 6º, §7º-B), caso o devedor não tenha optado pelo parcelamento de seu débito tributário, nos termos da lei; execuções promovidas por credores absolutamente não sujeitos à recuperação judicial, isto é, bancos titulares de crédito derivado de antecipação aos exportadores (ACC), proprietário fiduciário, arrendador mercantil e, ainda, o vendedor ou promitente vendedor de imóvel ou de bem com reserva de domínio (art. 6º, §7º-A).

No entanto, os credores tributários e proprietários não poderão exercer atos de constrição ou retirar bens de capital imprescindíveis à recuperação da empresa durante o stay period.[2]Ainda, não se suspendem as ações e as execuções em face de coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, nos termos da Súmula 581 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O reconhecimento da teoria da essencialidade de bens na recuperação judicial garante que não sejam retirados da posse do devedor os bens que de fato são essenciais à atividade empresarial. O objetivo da suspensão é dar fôlego ao devedor para conseguir negociar o plano de recuperação judicial, por isso, havendo outros réus nas ações e nas execuções, os processos continuarão em relação a estes.[3]

A intenção é estabilizar, por um período, a situação econômico-financeira do devedor para que ele possa concentrar as suas energias na aprovação do plano de recuperação judicial, com o controle de seus ativos. Dessa forma, o juiz da recuperação judicial não deve permitir que um credor individual retire os bens essenciais à atividade empresarial, em prol da coletividade de credores e à tutela da economia nacional.[4]

A suspensão também tem como função impedir a quebra da igualdade entre os credores, pois se não houvesse suspensão, alguns poderiam receber o valor de seus créditos e outros não. A suspensão das execuções levará os credores a decidirem conjuntamente o plano de recuperação proposto.

O STJ vem tentando regular as discussões que envolvem as constrições nas execuções contra empresas em recuperação judicial e a definição sobre a essencialidade ou não dos bens constritos. A matéria chega a Brasília através de inúmeros conflitos de competência, muitas das vezes, entre juízo federal e o juízo recuperacional.

Após as alterações trazidas pela Lei 14.112/2020, como já mencionado, vem sendo orientado aos juízos sobre como atuar de forma cooperativa, evitando conflitos de competência desnecessários, que só irão sobrecarregar o Judiciário.

Neste sentido, o CC 186.196/RJ, esclarece que “(…) para a configuração do conflito de competência perante esta Corte de Justiça, é necessário demonstrar: i) a efetiva determinação de ato constritivo exarado pelo r. Juízo Fiscal em detrimento do patrimônio da recuperanda; ii) decisão do Juízo da recuperação judicial exercendo o respectivo exame de controle (manutenção e/ou substituição) sobre o ato constritivo exarado pelo r. Juízo Fiscal valendo-se da cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015; iii) deliberação do Juízo da execução fiscal se opondo, concretamente, à deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito da constrição judicial”[5].

Em decisão no CC 181.190/RJ, o relator, ministro Marco Aurélio Belizze, aduziu que o §7º-B do art. 6º da Lei 14.112/2020 trouxe clareza sobre a delimitação da competência do juízo da recuperação judicial e do juízo da execução fiscal, pois estabelece a competência do juízo da execução fiscal para determinar a penhora sobre os bens da empresa devedora e, de outro, resguarda a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre os bens essenciais da empresa.

Adicionalmente, no julgamento do Recurso Especial 1.694.261/SP, a 1ª Seção do STJ cancelou o Tema Repetitivo 987, que discutia a possibilidade de atos constritivos contra empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal, por dívida tributária ou não tributária. Neste ponto, transcreve-se trecho do voto do ministro Mauro Campbell Marques: “Em suma, a novel legislação concilia o entendimento sufragado pela Segunda Turma/STJ – ao permitir a prática de atos constritivos em face de empresa em recuperação judicial – com o entendimento consolidado no âmbito da Segunda Seção/STJ: cabe ao juízo da recuperação judicial analisar e deliberar sobre tais atos constritivos, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial”.[6]

Contudo, é de se ressaltar que a Lei 14.112/2020 não detalha claramente os limites dessas competências na prática, cabendo ao STJ dar um direcionamento para que o conflito de competência seja utilizado adequadamente.

Em razão desses precedentes, os juízos das recuperações judiciais precisarão buscar, com criatividade, que se coloque em prática a cooperação jurisdicional. Isso ajudará a desafogar o Judiciário! Por outro lado, é necessário que o Superior Tribunal de Justiça também amadureça seu entendimento, desapegando do excesso de formalismos, sob pena de inviabilizar o acesso à justiça.


Notas

[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 244.

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 224.

[3] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 127.

[4] Os parágrafos 7º-A e 7º-B do art. 6º da LRF trazem, em seus dispositivos, o princípio da cooperação judicial previsto no art. 69 do CPC/15, que dispõe que os órgãos do Poder Judiciário devem, sempre que solicitados, cooperar em relação a diversos atos do processo.

[5] STJ – CC 186.196/RJ – Rel. Min. Marco Buzzi – j. 13/06/2022

[6] STJ – Primeira Seção – REsp 1.694.261/SP – Rel. Min. Mauro Campbell – j. 23/06/21

Publicado no JOTA.

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