Por Julia De Baére C. D’Albuquerque; Gabriela de Barros Sales; Alexandra Frigotto; Ana Luisa Fernandes Pereira de Oliveira
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O crescimento de grupos econômicos e a ausência de limites territoriais no âmbito empresarial nos parece consequência óbvia da globalização. Nesse cenário, é preciso considerar que eventuais crises e problemas empresariais precisam de soluções, parâmetros e normatividade efetiva, tendo como premissa o fato de que fronteiras e diferentes jurisdições não podem obstaculizar eventuais processos de insolvência ou prejudicar e diferenciar credores.
Nesse tema, em breves linhas, entende-se por insolvência transnacional a situação na qual o devedor, empresa multinacional, possui ativos em diferentes jurisdições ou quando algum credor situa-se em país diverso daquele em que está em trâmite o processo principal.
Claramente, um dos primeiros obstáculos vislumbrados é a existência de variados sistemas jurídicos que não necessariamente conversam entre si, podendo ser, inclusive, contraditórios e concorrentes em suas ramificações.
No Brasil, a ausência de regramento específico para o tema perdurou por muito tempo. Isso porque, mesmo com a Lei Modelo da Uncitral[1], a ser adotada em regime de soft law, isto é, sem qualquer efeito vinculante entre os países signatários, o Brasil não havia incorporado em sua legislação interna as disposições e regramentos ali trazidos, que têm por objetivo uniformizar os procedimentos de insolvência entre os países signatários, a partir da cooperação entre os Tribunais, através do compartilhamento de informações e o reconhecimento de decisões estrangeiras.
Somente em 2015 o Código de Processo Civil trouxe regras de cooperação internacional mais efetivas, fato que inaugurou espaço para que a insolvência transnacional se apresentasse de forma mais aparente no cenário nacional.
E, finalmente, em 2021, com a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, os dispositivos da lei modelo foram substancialmente incorporados na legislação falimentar brasileira, conforme será demonstrado.
Pois bem, a insolvência transnacional pode ocorrer a partir dos seguintes modelos: (i) sistema territorialista, em que o Tribunal de cada país tem a competência para decidir sobre os bens do devedor em seu território, de modo que os efeitos jurídicos são restritos ao país em que foi ajuizada a ação; (ii) sistema universalista, que prevê a extensão dos efeitos do processo de insolvência para outros países em que o devedor possua bens, de modo a alcançá-los; e (iii) sistema misto, em que existe o procedimento principal na sede do devedor e procedimentos secundários nos países em que existam bens a serem atingidos.
O sistema jurídico brasileiro adotava o sistema territorialista, consagrado no disposto no art. 3º da Lei 11.101/2005, que dispõe que “é competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil”.
Ocorre que, como visto, a lei era silente sobre a possibilidade de insolvências transnacionais e, diante dos casos da Sete Brasil, Grupo Oi e Grupo OGX, que envolveram sociedades estrangeiras, viu-se a necessidade de regulamentar a matéria, a fim de conferir maior segurança jurídica aos processos, considerando que a jurisprudência não era pacífica sobre o assunto.
Nas recuperações judiciais do Grupo OGX[2] e Sete Brasil[3], por exemplo, as sociedades estrangeiras foram excluídas do processo, com base na corrente territorialista. Contudo, após a interposição de recurso, as sociedades estrangeiras retornaram ao pólo ativo da Recuperação Judicial.
Já na recuperação judicial do Grupo Oi[4] houve o litisconsórcio ativo de 7 empresas do grupo econômico, incluindo duas sociedades estrangeiras presentes na Holanda. O processo brasileiro foi reconhecido na Inglaterra, Estados Unidos e Portugal. Ocorre que também houve pedido de falência das sociedades estrangeiras junto à Corte Holandesa, que seguiu em curso de forma concomitante ao processo brasileiro.
Com isso, o TJRJ entendeu que as sociedades estrangeiras se tratavam de meros veículos financeiros e que as decisões brasileiras deveriam produzir seus efeitos inclusive em território estrangeiro. Após a homologação do Plano do Grupo Oi no Brasil, também foram homologados planos de composição na Holanda, com cumprimento em território estrangeiro.
Reflexo desse cenário, houve a inclusão de extenso capítulo na Lei nº 11.101/2005, a fim de introduzir a insolvência transnacional no ordenamento jurídico brasileiro. O Capítulo VI-A, em significativo avanço legislativo, foi baseado na Lei Modelo Uncitral, com o fito de garantir maior segurança jurídica e previsibilidade para que investidores estrangeiros venham a atuar no Brasil, com o consequente fomento ao mercado de crédito, impulsionando o desenvolvimento da economia nacional.[5]
A partir disso, nota-se que o sistema jurídico brasileiro passou a adotar o sistema misto, marcado pela existência de um procedimento principal na sede do devedor e diversos outros procedimentos secundários nos países em que existem bens a serem alcançados.
Os reflexos dessa previsão legal podem, desde já, impactar e incentivar o desenvolvimento de uma nova jurisprudência, contribuindo com a projeção internacional das decisões aqui proferidas e consolidação da imagem internacional do Brasil no tema.
Isso porque um dos fatores considerados no relatório Doing Business é justamente a maneira pela qual o país enfrenta a insolvência, o que é determinante para que atuem economicamente na pretendida jurisdição.
O primeiro artigo do Capítulo VI-A traça os objetivos da insolvência transnacional, estabelecendo parâmetros para a sua interpretação e aplicação. São eles: (i) cooperação entre juízes e outras autoridades competentes do Brasil e de outros países em casos de insolvência transnacional; (ii) aumento de segurança jurídica para a atividade econômica e para o investimento; (iii) administração justa e eficiente de processos de insolvência transnacional de modo a proteger os interesses de todos os credores e dos demais interessados, inclusive do devedor; (iv) proteção e maximização do valor dos ativos do devedor; (v) promoção da recuperação de empresas em crise econômico-financeira, com a proteção de investimentos e preservação de empregos; e (vi) promoção da liquidação dos ativos da empresa em crise econômico-financeira, com a preservação e a otimização da utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos da empresa, inclusive os intangíveis.
De acordo com o art. 167 da legislação falimentar, o regramento introduzido no Capítulo VI-A seria aplicável quando (i) uma autoridade ou um representante estrangeiro solicita assistência no Brasil para um processo estrangeiro; (ii) é pleiteada assistência em um país estrangeiro relacionada a um processo disciplinado pela Lei nº 11.101/2005; (iii) há concomitância entre processos relativos ao mesmo devedor, dentro e fora do Brasil; e (iv) credores ou interessados de outro país querem participar ou requerer a abertura de um processo disciplinado pela lei.
Ademais, dentre as inovações da mencionada lei destaca-se a capacidade e legitimidade postulatória do representante estrangeiro[6] junto ao juízo brasileiro universal, condutor do processo de insolvência, dispensando-se instrumentos como a carta rogatória, observados os pilares do processo civil nacional tais como o devido processo legal e igualdade entre nacionais e estrangeiros.
Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça também regulamentou o tema na recentíssima Resolução 394/2021 de 28.05.2021, que institui regras de cooperação e de comunicação direta com os juízos estrangeiros em que tramitam os processos de insolvência transnacionais.
Dentre o disposto no documento observa-se no “protocolo de insolvência” o cuidado com a realização das audiências, a garantia da ampla participação das partes em todas as etapas do processo e a interlocução entre os magistrados somadas ao objetivo de eficiência e redução de custos de forma geral.
Nesse contexto, atendendo às diretrizes da nova legislação, em decisão inédita, o Juízo da 3ª Vara Empresarial do TJRJ[7] concedeu a antecipação de tutela à empresa Prosafe SE, do ramo de navegação, para reconhecer a existência de processo de insolvência da companhia em trâmite no Superior Tribunal de Singapura eis que preenchidos os requisitos previstos em lei.
Além disso, a decisão suspendeu o curso de processos de execução contra a devedora no país, de modo a assegurar a continuidade de suas atividades empresariais.
A decisão é um marco histórico quanto ao tema no Brasil, sendo o primeiro caso de reconhecimento de processo de insolvência estrangeiro com efeitos sobre os bens do devedor em território nacional, sob a égide do novo capítulo da Lei 11.101/2005.
Já é possível ver, portanto, os primeiros reflexos do reconhecimento e incorporação da insolvência transnacional ao ordenamento jurídico brasileiro, com a construção de uma nova jurisprudência que certamente contribuirá e incentivará o investimento estrangeiro no Brasil.
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NOTAS
[1] Referencial criado pela United Nations Commission on International Trade Law, Comissão de Direito Comercial Internacional das Nações Unidas-ONU, em 1997.
[2] TJRJ, 4ª Vara Empresarial, Processo nº 0377620-56.2013.8.19.0001.
[3] TJRJ, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0142307-13.2016.8.19.0001.
[4] TJRJ, 7ª Vara Empresarial, Processo nº 0203711-65.2016.8.19.0001.
[5] COSTA, Daniel Carnio. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/ Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo – Curitiba: Juruá, 2021. P. 313.
[6] A pessoa ou órgão autorizado no processo estrangeiro a administrar os bens ou as atividades do devedor.
[7] TJRJ, 3ª Vara Empresarial, Processo nº 0129945-03.2021.8.19.0001.