23 dezembro, 2021 - Artigos O voto de qualidade em paralelo ao voto em duplicidade

Por Lorena Soares dos Santos

Publicado no JOTA

Não raras vezes, no contexto dos processos administrativos sancionadores, deparamo-nos com julgamentos conflitantes, cujo colegiado, no exercício de sua atividade julgadora, não atinge o consenso instantâneo, nem mesmo a maioria capaz de gerar a prevalência de um voto. Em casos tais, de evidente empate, o voto de qualidade vem à tona e, com ele, a incerteza e a insegurança na utilização do instituto.

Diferentes em etimologia e utilidade, o voto de qualidade e o voto em duplicidade não podem ser interpretados como fenômenos equivalentes, tampouco como regra. No entanto, a sua utilização ganha frequência indesejada no âmbito administrativo federal, especialmente em órgãos paritários e de estrutura par, em que os seus membros, embora equivalentes na teoria, distanciam-se quando um só voto é computado como dois.

Em termos conceituais, o voto de qualidade, que também é amplamente previsto pelos tribunais brasileiros, confere ao presidente do respectivo juízo o poder de “minerva”, especialmente nos casos em que não tenha proferido voto quantitativo. A regra especial, ao menos em tese, não possui uso rotineiro e também não se confunde com o voto em duplicidade observado nos órgãos paritários da administração.

O fato é que a representação paritária e o voto de qualidade são noções essencialmente incompatíveis e a função judicatória do Estado, notadamente quando se tem um empate que possa resultar em condição mais gravosa ao acusado, deve se ater às balizas fixadas pela Constituição Federal. Em outras palavras, não é porque tal voto de minerva está previsto no Regimento Interno de um conselho que a sua legitimidade se pressupõe.

O referido critério de desempate, na contramão do que ocorre nos conselhos administrativos federais, deve se orientar pelos preceitos fundamentais de um Estado Democrático de Direito, mediante o qual, com arrimo no art. 5º, LVII, da Constituição Federal[1], presume-se a inocência do acusado, o chamado in dubio pro reo.

Certo é que o direito sancionador do Estado, pela interpretação sistemática do direito penal no âmbito administrativo, é expresso ao materializar o in dubio pro reo na apuração de votos cujo resultado inicial resulte em empate. A noção dada pelo art. 664 do Código de Processo Penal[2] é uma só: havendo aparente impasse do órgão julgador, ao se utilizar o voto de qualidade do presidente, há de prevalecer a decisão mais favorável ao acusado.

Não só no códex penalista, as demais legislações vigentes também vedam o Estado de utilizar o voto de qualidade em prejuízo do jurisdicionado. Nesse sentido, tome-se como exemplo a inovação trazida pelo artigo 28 da Lei 13.988/2020, amplamente celebrada pelos tributaristas, que pôs fim a um longo embate travado no Carf, prevalecendo interpretação mais favorável ao contribuinte em detrimento do voto de desempate[3].

Via de regra, a existência de um empate denota evidente incerteza dos julgadores quanto à licitude da conduta investigada, não sendo razoável, tampouco imparcial, que os órgãos no âmbito administrativo federal condenem com base em voto de qualidade, máxime quando esses conselhos são compostos por membros equivalentes em número e posição.

A respeito do tema, Luís Roberto Barroso, resgatando os princípios constitucionais da imparcialidade e do devido processo legal, elucida e pondera a atribuição de voto duplo nesses órgãos judicantes:

“Atribuir dois votos a um mesmo indivíduo no âmbito de um órgão judicante colegiado viola a garantia constitucional da imparcialidade, corolário do devido processo legal, porque: (i) confere influência dupla a uma pessoa na decisão (…); e (ii) o segundo voto será necessariamente igual ao primeiro e não resultado de uma nova apreciação”[4].

Com efeito, o voto em duplicidade desafia a acepção dada pelos parâmetros constitucionais. Desatender à presunção de inocência e, na esfera punitiva, fazer prevalecer em absoluto o poder do Estado contra o indivíduo fere a noção de proporcionalidade. Na lição de J. CANOTILHO, tal princípio “proíbe nomeadamente as restrições desnecessárias, inaptas ou excessivas de direitos fundamentais”.

Seguindo a mesma linha, na esfera judicial, o ministro Marco Aurélio, quando do julgamento do AI 682.486, ao examinar a constitucionalidade do art. 8º, II, da Lei 8.884/94, que atribuía a prerrogativa de voto duplo ao presidente do Cade, também expressou a parametrização limítrofe da Constituição[5].

Não sendo ocasião isolada, mas verdadeira compreensão da jurisprudência pátria, a 5ª Turma do STJ[6] reconheceu a impossibilidade de se utilizar do voto de minerva como critério de desempate em julgamentos de processos administrativos sancionadores.

Voltando-se à análise das instâncias ordinárias, a noção dada em sentença proferida no processo n°1002068-27.2017.4.01.3400[7], da Seção Judiciária do Distrito Federal, traduz e orienta o entendimento da esfera judicial, sem o que não há de se falar em julgamento que desconsidere a presunção de inocência.

Não por outra razão, nos processos nº 0017326-94.2017.4.01.3400[8] e 1000166-68.2019.4.01.3400[9], ambos da Seção Judiciária do Distrito Federal, observa-se a jurisprudência se solidificando no sentido de preservar o acusado e presumir a sua inocência.

E não nos parece que a solução pudesse ser outra. Veja-se que a prevalência da presunção de inocência é senso comum à doutrina, à jurisprudência e à experiência nacional. Com efeito, a mera duplicação do voto em conselho paritário, sem a necessária demonstração legal do seu cabimento, torna o julgamento impreciso, não isonômico, sem fundamentação válida, e omisso em algo tão grave ao exercício do direito de defesa quanto a utilização, em duplicidade, de voto gravoso ao acusado.

Para entrar em sintonia com a Carta Maior, na sistemática dos julgamentos em órgãos parajudiciais da Administração Pública, não é lícito privilegiar voto mais gravoso ao acusado na apuração cujo resultado inicial resulte em empate. Com efeito, a violação dessa ordem importa na quebra dos princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, sendo fato que o voto duplo, ao menos quanto a aplicação de sanções por órgãos da administração, não possui base legal para tal.

Expostas, sucintamente, as peculiaridades do voto duplo, e uma vez entendidos os princípios norteadores da função punitiva do Estado, seria possível transferir essa noção para o plano administrativo? Melhor dizendo, a presunção de inocência em caso de empate é conceito utilizado como regra pela Administração?

A análise do tema nos propõe reflexões e reforçam a urgência dos aspectos ora abordados. O fato é que o voto duplo nos órgãos parajudiciais da administração causam grande agitação no mundo jurídico, gerando cada vez mais críticas a esse mecanismo dúbio de desempate. Qual será o panorama nos próximos anos? Certamente um tanto quanto diferente daquele que vivenciamos hoje.


[1] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; […]

[2] Art. 664 […]

Parágrafo único. A decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.

[3] Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E: Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

[4] A atribuição de voto duplo a membro de órgão judicante colegiado e o devido processo legal. Revista do Ibrac – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, vol. 16. São Paulo: RT, janeiro de 2009, p. 45.

[5] “O deslinde do importante caso submetido ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE ocorreu mediante manifestação de dupla vontade – dupla no sentido de duplo voto – do Presidente do órgão, contrariando-se, a meu ver, parâmetros constitucionais, princípios implícitos na Carta 1988. Não consigo, diante das balizas da Constituição, dita ‘cidadã’ por Ulysses Guimarães, concluir que alguém possa ter o poder tão grande de provocar um empate e, posteriormente, reafirmando a óptica anterior, dirimir esse mesmo empate”. AI 682486 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 18/12/2007, DJe-047 DIVULG 13-03-2008 PUBLIC 14-03-2008 EMENT VOL-02311-10 PP-01874 RTJ VOL-00205-02 PP-00935.

[6] RMS 24.559/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe 01.02.10.

[7] “Ora, o voto de qualidade, ou voto de Minerva é reservado para aquelas situações em que, não tendo votado o presidente do órgão, o resultado da votação esteja empatado. Nestas condições, cabe ao presidente desempatar, através de seu único voto, pois nem de longe tal faculdade pode significar o poder do presidente votar duas vezes, induzindo o empate (já que sem sua intervenção a orientação por ele escolhida não seria vitoriosa) e, após, garantir a prevalência do seu entendimento pelo uso do “voto de qualidade”. […] Numa diferença de apenas um voto, o que não é difícil num colegiado pequeno, especialmente nos casos mais polêmicos, acabaria sempre prevalecendo a posição do Presidente, num rematado e claro descumprimento do princípio democrático”. Processo n. 1002068-27.2017.4.01.3400. Juíza Federal Edna Márcia Silva Medeiros Ramos. 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.

[8] “[…] conforme entendimento deste juízo, já manifestado em outros feitos, é ilegal o voto de qualidade, devendo ser adotado o entendimento mais favorável ao indiciado. […] Ademais, o eg. STJ adota entendimento no sentido de que nas demandas administrativas deve ser aplicado o princípio do in dubio pro contribuinte, afastando a possibilidade de ser proferido voto de “qualidade” como ocorreu no caso sob exame […] Dessa forma, deve ser desconsiderado o voto de qualidade, adotando-se a decisão mais favorável aos acusados […]”. Processo n. 0017326-94.2017.4.01.3400. Juiz Federal Renato C. Borelli. 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.

[9] “O voto de desempate ou voto de minerva justifica-se quando, não tendo votado o Presidente da Sessão, haja empate na votação dos demais membros do colegiado do CRSFN, havendo necessidade de se proferir um único voto do respectivo Presidente, para decidir qual dos entendimentos divergentes deve preponderar, e não para conceber uma maioria qualificada, como se o voto do presidente equivalesse ao de dois membros”. Processo n. 1000166-68.2019.4.01.3400. Juiz Federal Cristiano Miranda de Santana. 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Lorena Soares dos Santos é advogada no escritório Wald Antunes Vita Blattner, formada pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), membro do Grupo de Estudos em Direito, Recursos Naturais e Sustentabilidade (GERN) e da Comissão de Contratos e Responsabilidade Civil da OAB-DF.

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